O espaço de uma coluna é insuficiente para expormos as imensas, e amplamente documentadas, contribuições do cristianismo para o mundo ocidental. Para chegar logo ao meu assunto, vou com duas referências para os interessados em entender mais – uma clássica e outra bem recente: A “Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” do hors-concurs Max Weber e“Dominion”, infelizmente ainda sem tradução para o português, do historiador de Oxford, Tom Holland. É claro que há extensa bibliografia sobre o assunto, mas o que isso tem a ver com de “Pecado e Perdão” para “Vergonha e Honra”?
Continuamos refletindo aqui sobre a tal “Numismática do Diálogo Contemporâneo” e só não coloquei que se tratava da parte III desta série no título porque ele ficaria tão grande quanto o de uma tese em literatura apocalíptica. Acontece que da maneira como andamos nos relacionando nas Redes Sociais estamos ruindo um dos pilares nos quais se assentam a civilização ocidental (Recentemente alguém disse que somos “latinos” e não “ocidentais”, conversa fiada: somos latinos e ocidentais). Estou falando da “Cultura do Cancelamento”. Ela é mais perniciosa do que se pode imaginar. Não se trata apenas de algumas biografias em risco. O que estamos colocando no fio da navalha, de fato, é a perda de um aspecto importantíssimo da nossa tessitura social: a capacidade de perdoar e recomeçar.
Acontece que em nossas relações sociais contemporâneas, nas quais todo mundo se sente obrigado a opinar sobre tudo nas redes sociais (assunto aliás, para uma outra coluna), a oportunidade de cometer um erro perante milhares de pessoas tornou-se bastante real. Estes erros estão atrelados a pecados que a nova cultura mandatária nas redes sociais considera imperdoáveis. Quando o indivíduo baixa a guarda e comete um desses erros começa o processo de cancelamento público na rede social. Apesar de a imagem mais utilizada estar relacionada aos “altos de fé” da Inquisição, que aliás foi muito mais ativa na Idade Moderna do que na Idade Média, terminavam muitas vezes nas execuções mais grotescas das quais se pode ter notícia, essa imagem, na minha opinião, não é mais adequada. Não é adequada porque faz referência a um pecado grotesco que parte da igreja dita cristã cometeu no passado e por sua vez os cancelamentos das redes sociais dos nossos tempos distam diametralmente do cristianismo, até mesmo do cristianismo ruim.
O que acompanhamos hoje no ambiente virtual tem um paralelo muito mais certeiro com as chamadas sociedades de “Vergonha e Honra”. Eis um exemplo: quando um Esparciata, um cidadão espartano gozando dos seus plenos direitos, era ferido nas costas isso só podia significar uma coisa: aquele homem deu as costas ao inimigo em batalha. Não interessava em que circunstâncias ele teve de fazer isto: uma sociedade totalmente arquitetada na guerra e para guerra não podia tolerar isto. O Esparciata então caia em desgraça, cometia um erro imperdoável e por isso não mais poderia integrar o grupo dos iguais. O que ocorre nessas sociedades é que a Vergonha anula completamente a Honra e para isso não há remédio. Não é à toa que a palavra ostracizar tenha etimologia grega e origem na Pólis: desaparecer com uma pessoa por dez anos é uma solução absolutamente plausível para uma Atenas baseada em Vergonha e Honra.
Entretanto, como explicam ambos, Weber e Holland, o cristianismo venceu culturalmente no Ocidente. À medida que avançava sobre a religião cívica e distante do Império Romano ou sobre a belicosidade impiedosa das religiões germânicas as benesses culturais do cristianismo substituíam paulatinamente Vergonha e Honra por Pecado e Perdão. Séculos mais tarde a Vergonha era entendida como Pecado, e a Honra poderia ser restaurada pelo Perdão. Contudo, agora estamos diante de um grande retrocesso. Pecados sem Perdão estão surgindo novamente e eles passam muito longe de “Blasfêmia contra o Espírito Santo”. E note muito bem, a maioria destes pecados é, de fato, terrível, tristes manifestações do nosso coração caído e inclusive apontados como pecados pela própria Escritura Sagrada. Entretanto, quando eles passam a ser imperdoáveis, já voltaram a ser a antiga “Honra” dos implacáveis guerreiros indo-europeus ou dos samurais asiáticos. Os dracônicos moralistas modernos são tão imperiosos quanto o próprio Drácon. O que eles determinam como “Vergonha” acaba por ser nada mais do que uma distorção macabra do Pecado Original, pois não há plano para redenção, o que significa que não há perdão. Caso seus dedos em riste apontem para um indivíduo este está eliminado no espaço virtual e, por algumas vezes, em casos mais tristes e sintomáticos, até mesmo da existência (o suicídio em casos de cancelamento já é uma infeliz estatística). Aqueles que não querem admitir a realidade do problema cantarão os méritos justiceiros de seus rituais de conformidade social. Nada surpreendente aqui, já que o interesse dos que tocam essa agenda de forma consciente tem tudo a ver mesmo com o desmanche das estruturas sociais cristãs. É por esse motivo que meu apelo aqui é ao leitor cristão: há espaço para perdão de pecados na sua timeline? Ou você já aderiu sem perceber a sociedade da “Vergonha e Honra”? Nossa estrada é rumo à Nova Jerusalém ou rumo ao antigo acampamento militar permanente no Lácio?